O habeas corpus de Lula

Não sou especialista em Direito Penal, mas como advogado acompanhei com atenção o julgamento de ontem em Brasília, que muito além de discutir a possibilidade de prisão do ex-presidente Lula, trata de questão que afeta à sociedade por inteiro.

Como bem lembrado pelo Min. Barroso, não se tem notícia de nenhum país no mundo, salvo o Brasil, onde se tenha admitido como regra a prisão somente após a instância extraordinária, que, por estes lados, equivale à 3ª. instância recursal.

A questão jurídica é polêmica, sendo plenamente compreensível que existam argumentos em um ou outro sentido, e o placar final da votação mostra isto. De fato, a interpretação literal do artigo 5º., inc. LVII, afirma expressamente a presunção de inocência, de tal modo que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Pela interpretação literal, a prisão somente poderá ocorrer após o esgotamento de todos os recursos, algo que, na prática, para quem possui bons advogados, somente ocorre décadas após o fato.

Quem não tem advogado, quem é pobre, normalmente é preso em flagrante e encarcerado desde logo, provocando uma situação na qual existem, de fato, duas justiças, uma para o rico e outra para o pobre. Tal situação de desigualdade não serve de argumento para justificar qualquer das posições jurídicas envolvidas, mas como alertou a Min. Carmem Lúcia, demonstra a injustiça da interpretação literal da norma constitucional em questão.

Como bem afirmou o Min. Alexandre Barros, não faz sentido admitir a prisão cautelar antes de esgotadas as instâncias ordinárias (antes mesmo da sentença do juiz singular) e, ao mesmo tempo,  não admitir, como regra, a prisão após 2ª. instância, ainda que apenas em caráter preventivo.

Afinal, como recorda o Min. Fux, após esgotadas as instâncias ordinárias já estão, em regra, afirmadas de forma definitiva a autoria e materialidade do delito, ou seja, é fora de dúvida que ocorreu o crime e o réu foi responsável por ele. Tal questão, relativa a fatos e provas do processo, não pode mais ser discutida na instância extraordinária. Ademais, como bem alertou em seu voto, a prisão do condenado não está, no texto da Constituição, vinculada ao trânsito em julgado da decisão, mas à existência de ordem judicial que a determine.

Vamos entender melhor a questão.  Para compreender o que são recursos extraordinários ou extravagantes, categoria na qual se incluem o Recurso Extraordinário ao STF e o Recurso Especial ao STJ, antes é preciso entender o que são os recursos ditos “ordinários”.

O direito brasileiro  consagra o princípio do duplo grau de jurisdição, não apenas por meio da Constituição Federal (de modo implícito nos artigos LIV e LV do mesmo artigo 5º.), mas também por normas infraconstitucionais. Para assegurar este princípio, existe, para todas as decisões judiciais proferidas em 1ª. instância, um órgão responsável para julgamento de recurso “ordinário”. A característica intrínseca deste recurso é que ele é SEMPRE cabível, respeitadas as condições mínimas de admissibilidade. Desde que a parte vencida manifeste interesse e, dentro do prazo, proponha o recurso adequado, previsto na legislação, o recurso será apreciado.

Em contrapartida, para os recurso extraordinários não basta interesse, legitimidade e adequação, requisitos elementares a todos os recursos. É também necessário que o recorrente demonstre haver cumprido requisitos específicos, exigidos pela Constituição Federal (artigo 102 e incisos, para o RE, e artigo 105 e incisos, para o RESP).

Por esta e outras razões é que, na instância extraordinária não se admite a discussão de QUESTÃO DE FATO, a respeito do conjunto probatório que embasou a decisão de 2ª. instância, da qual se recorre extraordinariamente. O recurso extraordinário ou especial deve partir dos fatos admitidos pelo acórdão recorrido e, a partir daí, dar a correta interpretação do direito (norma constitucional, no RE, e norma infraconstitucional, no caso do RESP).

No âmbito do direito penal, isto significa que, como já afirmado, não se poderá mais discutir se o crime ocorreu e se o réu o praticou. Isto explica a estatística invocada pelo Min. Barroso, pela qual, a grosso modo, menos de 1% dos recurso extraordinários e/ou especiais geram absolvição ou alteração de regime favorável ao réu.

Neste contexto, não faz sentido, para proteger este 1% dos recorrentes (número superestimado, falou-se em 0,5%), manter fora da prisão, às vezes de forma definitiva, os outros 99% dos réus. Como bem lembrado pelo Min. Barroso, cujo voto revelou-se verdadeira aula de direito, enquanto vigente a interpretação sustentada pelo HC de Lula (entre 2009 e 2016), em muitos casos ocorreu a PRESCRIÇÃO da pretensão punitiva, ante o tempo decorrido até o trânsito em julgado da decisão condenatória penal.

São os absurdos de um sistema que privilegia as garantias individuais e negligencia uma função essencial do direito penal, que é a de PREVENIR o delito.

Ainda, lembrando a lição do Min. Barroso, não se pode admitir a interpretação de uma norma constitucional que conduza a uma injustiça, e injusta é a situação que mantém impunes os criminosos engravatados, que jamais são pegos em flagrante delito e que, por isso, em razão de um sistema processual atravancado e absurdo, se e quando são condenados nunca são presos ou, quando o são, acabam cumprindo pena em prisão domiciliar, depois de usufruir por anos, em alguns caso décadas, do ganho ilícito obtido em seus reiterados delitos.

Respeito a opinião daqueles que entendem em sentido contrário, até porque a literalidade da norma constitucional dá azo à interpretação literal do inciso LVII do citado dispositivo constitucional. Mas existem bons argumentos em ambos os lados, e, salvo melhor juízo, a interpretação mais razoável, consentânea com a própria finalidade do Direito Penal, é a que permite a prisão preventiva do réu esgotadas as instâncias ordinárias.

A outra interpretação, no contexto atual, equivale a um incentivo à IMPUNIDADE, o que não pode o intérprete admitir.

Aos petistas fanáticos, revoltados com o STF, alerto que o Lula, SE vier a ser preso, o será em razão de haver sido condenado nas instâncias ordinárias, não diretamente em razão da decisão de ontem, cuja relevância e importância vão muito além do caso individual julgado.

Diga-se que, da forma como são resolvidas as questões no STF, não fosse a extrema importância e repercussão do tema não duvido que, em outro processo, de outra natureza, a decisão fosse favorável ao petista, como, aliás, já se especula em razão da ação direta de constitucionalidade cujo julgamento se vislumbra próximo.

Por outro lado, aos fanáticos que desejam a prisão do Lula, cabe também o alerta de que há muita água para rolar embaixo desta ponte. Não me surpreenderei se, neste momento, já estiverem articulando um outro modo de livrá-lo da prisão, porém com argumentos mais pertinentes à situação individual do petista.

Da minha parte, por entender que este país só irá mudar no dia em que os corruptos perceberem que seus delitos serão efetivamente punidos, aplaudi a decisão do Supremo Federal que negou acolhimento ao habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Lula.

Marcos Bittencourt

Como Procurador do Estado de São Paulo, entre 1989 e 1997, atuou na Procuradoria Fiscal, em setor encarregado da defesa dos interesses fazendários nas ações de conhecimento (ICMS, IPVA, etc.) movidas em face do Estado de São Paulo. Entre 1998 e 2004, atuou na Procuradoria Judicial e na Procuradoria Regional de Campinas. Após 2004, experiência como autônomo e em escritório de médio porte, na área cível em geral (contratos, imobiliário, família, consumidor etc.). Capacitado como mediador judicial.

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