A realidade de cada um

Em razão de stress, pressão alta, depressão, enfim, problemas diversos, há cerca de quinze anos descobri um problema no fundo do olho, que me prejudicou a visão. Um tipo de derrame, não me lembro do nome da coisa. Fui ao oftalmologista e descobri que nunca mais teria uma visão perfeita, o olho direito revelava uma imagem ligeiramente distorcida, alongada, como em um daqueles espelhos dos antigos parques de diversão. Sorte que o cérebro, auxiliado pela boa visão do olho esquerdo, faz a devida compensação, de tal forma que tenho uma imagem bastante próxima da realidade. Mas sei que não corresponde, com perfeição, à realidade. Ao menos eu sei disso.

Conto isto não para que tenham pena de mim, nada disso. Afinal, quase nem me lembro do problema no cotidiano. Faço-o porque, no sentido figurado, todos nós enxergamos um mundo diferente do real, com maior ou menor distorção.

É que nossa formação, nível de instrução, família, temperamento, estado de saúde, enfim, tudo o que nos cerca, toda a nossa história interfere com o modo com que abordamos um fato ou uma informação nova.

Não obstante, as coisas são o que são.

Isto é absolutamente normal, posto que todos nós temos limitações, ditadas pelas circunstâncias já citadas. Por exemplo, eu nunca terei a mesma visão sobre problemas raciais que um preto (negro, salvo melhor juízo, hoje é considerado termo pejorativo), que sofre diretamente as consequências do racismo. É uma questão de perspectiva. Procuro, no entanto, entender essa outra visão, para buscar uma imagem mais próxima da realidade. Tento fazê-lo em tudo, porque pior do que não enxergar é fechar os olhos à realidade.

Hoje em dia, contudo, o problema é ainda mais grave. As pessoas não apenas têm que lidar com suas próprias limitações naturais, que distorcem a realidade, mas precisam superar as posições que deliberadamente assumem, todas aquelas coisas que aceitamos como verdade absoluta. Religião, convicção política, moralidade, as pessoas assumem posições cada dia mais inflexíveis para, a partir daí, analisar qualquer fato ou informação nova.

Isto se viu claramente no episódio Mariele. Poucos analisaram o caso com isenção. Aqueles que se incomodavam com as posições políticas dela procuravam relativizar, minimizar a importância do fato, faziam comparações com outros fatos, relevantes ou não, alguns até divulgaram notícias falsas, visando denegrir a imagem da vereadora assassinada. Absurdo. Não deram ao fato a dimensão que merecia.

Por outro lado, os que simpatizavam com ela e com suas ideias viraram o fio, aproveitaram o clamor da mídia para protestar, fazer barulho, mudar o mundo. Exageraram. Não houve bom senso para concentrar esforços em uma causa comum, não deixar o fato cair na obscuridade, exigir e continuar exigindo uma investigação rigorosa. Uma vereadora foi assassinada, em circunstâncias para lá de suspeitas, fato gravíssimo que afeta a toda sociedade. Ponto.

O viés ideológico, no entanto, transformou o fato em uma verdadeira batalha, onde só há perdedores. Depois de todo o barulho, pouco se sabe das investigações a respeito do crime. Lamentável.

As posições que as pessoas assumem de antemão impedem a análise lúcida e isenta de um problema qualquer. O sujeito olha para um fato novo e pensa:  “Como isto interfere comigo? Prejudica meu pensamento, MINHA realidade?”. Somente depois emite sua “opinião”, enquadrando o fato à SUA realidade, aquela que lhe é mais confortável, mais consentânea com as ideias que já alimentava antes. Nada muda, nada evolui.

As redes sociais facilitam e estimulam esse mecanismo. As pessoas se sentem obrigadas a defender as ideias que já expuseram, quando menos por uma questão de vaidade, ego. Quem nunca se viu ansioso para olhar ou contar quantas curtidas seu post recebeu, quem comentou, quem  discordou. Não vai aqui qualquer crítica, pois esse é um comportamento natural. O que não precisa ser natural é a intransigência, a incapacidade de ver o mundo sob o olhar do outro, a incapacidade de, eventualmente, mudar de opinião. A falta de empatia e humildade para reconhecer um equívoco e mudar de rumo, reavaliar suas ideias.

Na verdade, a cada vez que analisamos um fato novo, uma informação nova, precisamos nos despir de nossas convicções, de nossos preconceitos, para questionar: “é realmente isto? Qual o real significado do fato?”

Se não o fazemos corremos o sério risco do ridículo, como incorrem aqueles que repudiam e detestam o “pessoal dos direitos humanos”, estigmatizando uma questão que deveria ser de interesse comum a toda a sociedade. Direitos humanos, como bem demonstrou a vereadora Mariele em sua luta em defesa dos policiais militares, maltratados e negligenciados pelo Estado, não se limitam à proteção de “bandidos”, como sugere o povinho de visão estreita. Diz respeito aos direitos essenciais proclamados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, direitos que todos adquirem em razão de nascerem “seres humanos”.

No mesmo ridículo incorrem agora os petistas radicais, ao proclamarem, em alto e bom som, que o STF, no julgamento do habeas corpus de Lula, “rasgou a Constituição”, praticou apenas mais um ato da grande “conspiração” que se erigiu para condenar um inocente “sem provas”.

Ora, a questão de direito que estava em discussão é extremamente relevante, e não diz respeito exclusivamente ao Lula, mas a todos os réus penalmente condenados em segunda instância. Trata-se de questão polêmica, que vem sendo discutida pelo STF há 30 anos à luz da presente carta constitucional, mas que já era relevante desde os tempos da primeira Constituição da República. Diga-se, só para ilustrar, que em toda a história do Brasil apenas em um breve instante, entre 2009 e 2016, vigorou a tese sustentada pelos advogados de Lula, o que já demonstra a razoabilidade de se discutir o tema.

Não, não se engendrou uma conspiração no STF apenas para punir o Lula, nem foi “rasgada” a Constituição para prejudica-lo. O tema – momento de início do cumprimento da pena –  é controvertido e, reconheço, ambas as teses possuem  argumentos sólidos, mas, como acontece em toda discussão jurídica, não há uma certeza absoluta sobre qual dos lados está com a razão. Ambas são teses plausíveis e razoáveis.

Nem mesmo se pode falar, após julgamento em duas instâncias, que houve uma condenação “sem prova”. Somente poderia afirma-lo quem leu o processo por inteiro. Eu não o fiz, mas parece lógico concluir que alguma prova foi apresentada. A valoração dessa prova é de competência dos juízes, ao mesmo tempo em que aos advogados do réu cabe desconstitui-la ou aprecia-la de modo favorável à sua tese, o que certamente foi e é objeto dos reclamos e petições dos advogados do acusado.

Quem observa de longe precisa afastar da análise suas paixões. Objetivamente, um réu foi condenado, em um processo no qual foram observados os princípios do contraditório e da ampla defesa, e agora poderá ser preso, em razão de ordem judicial.

Eu lamento   que esse reú seja o Lula, possivelmente o personagem político mais importante do Brasil nesses últimos 40 anos, por tudo que ele representou e representa, sua luta pela redemocratização, a bandeira dos avanços sociais, o discurso pelos menos favorecidos. Mas há uma mancha inequívoca em seu currículo, que também não podemos ignorar.

Enfim, é muito triste que esse personagem tão importante venha a ser preso, mas, por outro lado, se o STF adotar o entendimento que favorece a impunidade de todos os réus já condenados em segunda instância ficarei ainda mais triste, pois este país só irá evoluir no dia em que os poderosos tiverem a certeza de que seus crimes não ficarão impunes.

As coisas são o que são. Não queiram enxergar um unicórnio onde só existe um cavalo. Ou se alarmar com um dragão onde só existe um mosquito. O pior que pode acontecer é acariciar um leão pensando que se trata de um gatinho.

Marcos Bittencourt

Como Procurador do Estado de São Paulo, entre 1989 e 1997, atuou na Procuradoria Fiscal, em setor encarregado da defesa dos interesses fazendários nas ações de conhecimento (ICMS, IPVA, etc.) movidas em face do Estado de São Paulo. Entre 1998 e 2004, atuou na Procuradoria Judicial e na Procuradoria Regional de Campinas. Após 2004, experiência como autônomo e em escritório de médio porte, na área cível em geral (contratos, imobiliário, família, consumidor etc.). Capacitado como mediador judicial.

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