O baixo custo da ilegalidade. Passagem aérea.

Problema frequente nos aeroportos brasileiros, muitos passageiros vem sendo lesados por uma conduta ilícita das Companhias aéreas, nos casos em que se  faz necessário, por vontade do passageiro, adiar ou cancelar a viagem já contratada.

O problema ocorre, em grande parte, pela postura da ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil – de dar amparo às condutas das companhias aéreas, que impõem inúmeras dificuldades ao contratante arrependido, tanto para remarcar a passagem, quanto para devolver o valor pago antecipadamente.

Para adiar a viagem, as companhias aéreas cobram  um valor abusivo a título de “taxa de remarcação”, valor que muitas vezes é igual ou superior ao valor contratado originalmente. Do mesmo modo, para cancelar a viagem, os valores retidos a título de cláusula penal costumam ser elevadíssimos, resultando na devolução ao passageiro de um valor inexpressivo, uma migalha comparada com o valor pago.

Aos que protestam, alega-se que não se aplicam ao caso as normas do Código Civil ou do Consumidor, mas apenas a legislação especial, regulamentada pela ANAC, que supostamente ampara todos os procedimentos adotados pelos empresários do setor.

Para analisar o problema é preciso entender que, mais do que envolver uma antinomia jurídica (conflito de leis), a exigir um esforço de hermenêutica para solucioná-la, a questão envolve uma postura arrogante e abusiva das autoridades aeroportuárias, que incorrem em inconstitucionalidade ao permitir que sejam adotadas práticas flagrantemente lesivas à lisura do contrato relativo à aquisição de passagem aérea.

Afirme-se, categoricamente, que não existe qualquer conflito normativo a ser considerado, ao menos entre a Lei Federal n. 7.565/86 (Código Brasileiro de Aviação ou CBA) e os Códigos Civil (CC)  e do Consumidor (CDC).

Dispõe o artigo 740 do CC:

“Art. 740. O passageiro tem direito a rescindir o contrato de transporte antes de iniciada a viagem, sendo-lhe devida a restituição do valor da passagem, desde que feita a comunicação ao transportador em tempo de ser renegociada.”

Regulamentando o Código Brasileiro de Aviação, diz a Portaria ANAC 676/00:

Art. 7o O passageiro que não utilizar o bilhete de passagem terá direito, dentro do respectivo prazo de validade, à restituição da quantia efetivamente paga e monetariamente atualizada, conforme os procedimentos a seguir”

 

Observe-se:

  1. a) é uníssono no âmbito legislativo o caráter contratual da relação jurídica;
  2. b) o CBA (Artigo 228) ressalva que a passagem tem validade de um ano, período no qual pode ser utilizada pelo passageiro;
  3. c) o Código Civil e a legislação específica admitem a devolução do valor pago, em caso de cancelamento por ato unilateral do passageiro, ressalvando o artigo 740 do CC que tal devolução está condicionada ao cancelamento em tempo hábil para a renegociação da passagem;
  4. d) tanto a legislação comum quanto a especial admitem a cobrança de uma penalidade em caso de cancelamento por ato unilateral do passageiro.

Afirme-se, pois, que tanto a devolução do valor pago quanto a possibilidade de remarcação da passagem, por disposição de vontade do passageiro, são direitos inequívocos, ante a legislação aplicável.

A divergência se dá quanto aos LIMITES para a cobrança da “taxa de remarcação” (para o adiamento da viagem) e do valor a ser retido, em caso de cancelamento.

Quanto à chamada “taxa de remarcação”, s.m.j., não há um limite expressamente estabelecido, o que não afasta a necessidade de, ante a consideração de que é sempre necessário preservar o equilíbrio do contrato, esta taxa não pode ser de tal monta que inviabilize o direito assegurado ao passageiro.

No tocante ao valor a ser devolvido em caso de cancelamento, diz o Código Civil, no parágrafo 3º. do mencionado artigo 740, que este limite não poderá ser superior a 5%  “cinco por cento da importância a ser restituída ao passageiro, a título de multa compensatória”.

A portaria ANAC 676/00, por outro lado, afirma que, no caso de reembolso, “poderá ser descontada uma taxa de serviço correspondente a 10% dez por cento) do saldo reembolsável” (art. 7º, par. 1º.).

Aqui, quer se considere que vale o CC,  norma geral e hierarquicamente superior, quer se entenda pela validade da Portaria ANAC, norma especial e hierarquicamente inferior, a polêmica não tem a menor relevância econômica.

O problema, de fato, ocorre ante o disposto no parágrafo 2º. do Artigo 7º da Portaria ANAC 676/00, que afirma ser inaplicável aquele  limite se o bilhete houver sido adquirido mediante  a chamada “tarifa promocional”.

Nestes casos a ANAC entende não haver limites, a empresa pode estabelecer, no ato da contratação ( via contrato de adesão), o valor que desejar, tanto para o caso de reembolso, quanto para a cobrança da tal “taxa de remarcação”, para o caso de adiamento da utilização da passagem.

Aqui reside a inconstitucionalidade da Portaria ANAC, especialmente de seu parágrafo 2º. supra citado, pois todo e qualquer contrato deve respeitar o princípio da IGUALDADE, expresso no artigo 5º., caput, da Constituição Federal, princípio este que sustenta e informa o disposto nos artigos 421 e 884 do Código Civil, bem como o artigo 39, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor.

Com efeito, o princípio jurídico que zela pelo EQUILÍBRIO nas relações contratuais  – e ao mesmo tempo veda o enriquecimento ilícito – tem em vista não apenas o citado princípio constitucional da igualdade, pelo qual “todos são iguais perante a lei”, mas também o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade (artigo 37, caput, da CF), que informa todos os atos administrativos e, mesmo, os legislativos.

Pondere-se que o equilíbrio é característica da essência dos contratos bilaterais, ato pelo qual se estabelecem direitos e obrigações recíprocas e proporcionais. Permitir a uma parte obter “vantagem excessiva” compromete  a própria natureza jurídica do instituto.

Neste contexto, ao possibilitar que um contratante receba “vantagem excessiva”, a Portaria ANAC 676/2000 incorre, antes de mais nada, em vício de INCONSTITUCIONALIDADE, não sendo sequer necessário indagar, neste particular, qual legislação prevalece.

Norma inconstitucional não tem qualquer validade, sendo irrelevante qualquer discussão a respeito de hermenêutica ou antinomia jurídica.

É neste contexto que, se a remarcação da passagem for impraticável, ante o valor excessivo da chamada “taxa de remarcação”, é direito do passageiro exigir (se for o caso em juízo) a devolução do valor pago, sujeitando-se à retenção de um percentual do valor pago a título de “cláusula penal” ou “multa compensatória”, que deve variar entre 5% e 10%, sem prejuízo da eventual cobrança de indenização a título de danos morais, ante a flagrante inconstitucionalidade dos atos praticados pelas empresas do setor.

 

Marcos Bittencourt

Como Procurador do Estado de São Paulo, entre 1989 e 1997, atuou na Procuradoria Fiscal, em setor encarregado da defesa dos interesses fazendários nas ações de conhecimento (ICMS, IPVA, etc.) movidas em face do Estado de São Paulo. Entre 1998 e 2004, atuou na Procuradoria Judicial e na Procuradoria Regional de Campinas. Após 2004, experiência como autônomo e em escritório de médio porte, na área cível em geral (contratos, imobiliário, família, consumidor etc.). Capacitado como mediador judicial.

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