Os dias eram assim

Ouvindo a música de Ivan Lins, e olhando para o grande número de pessoas que se esqueceram, ou não dão importância, me veio a inspiração para este texto.

Neste dia dos pais, vendo todos que prestam homenagens aos seus, percebi pela primeira vez que jamais tive o privilégio de comemorar a data junto de meu pai, simplesmente porque o destino não nos permitiu.

Meu jeito de homenageá-lo é contar um pouco da sua história, que justifica muito do que sou e penso hoje.

Líder estudantil, tendo sido diretor do C.A. XI de Agosto e Presidente da União Estadual dos Estudantes, logo que começou a advogar assumiu posto junto à Federação dos Metalúrgicos do Estado de São Paulo e, daí, foi recrutado por uma Multinacional como gerente/diretor de recursos humanos. Faleceu em janeiro de 1964 aos vinte nove anos de idade, em um acidente de veículo. Eu tinha três meses de idade.

Mas com esse histórico não ficou imune ao radar da Ditadura Militar e, pouco depois do golpe, foram procura-lo em seu último local de trabalho.

A morte talvez tenha sido uma benção, ante o que se imagina que lhe aconteceria em um porão qualquer.

Não bastasse, o meu pai substituto, meu avô materno, em casa de quem residi na minha infância, também estava no radar da repressão. Jurista de renome, escrevendo por quase uma década em uma coluna semanal no jornal  Folha da Manhã, foi um dos dois juízes que tiveram seus direitos políticos cassados pelos militares.

Sei que a maioria das pessoas não sofreu as consequências do regime nefasto que se instaurou naquela época.  Em um universo de milhões, o que são algumas centenas de perseguidos políticos? A maioria tocou a vida sem perceber o que acontecia, simplesmente porque podia. Estavam fora do radar da repressão.

Mas não se pode esquecer. Para cada desaparecido ou morto pelo regime, famílias inteiras foram afetadas. Se o número oficial é inferior a mil assassinados ou desaparecidos (número contestado por muitas fontes), o número de pessoas que convivia diariamente com o medo da perseguição é incalculável. Jornalistas, artistas, intelectuais, qualquer figura de algum destaque nestas áreas estava no radar, podia ser de uma hora para outra levado para interrogatório, sem qualquer justificativa ou ordem judicial. A tortura era uma realidade conhecida e divulgada, ao menos para quem tinha ouvidos.

O medo pairava no ar e mesmo uma criança, como eu, conseguia perceber. Como percebia sempre que passávamos de carro, eu e minha mãe, nas proximidades do quartel da região do Ibirapuera. Ela me mandava abaixar no banco e reduzia a velocidade, talvez até demasiadamente. Até o dia em que vimos dois fuzis apontados para o carro, um diretamente em minha direção. Não, a ameaça era real.

Tempos de guerra fria, inverno do mundo, os dias eram assim… A música de Ivan Lins (Aos nossos filhos) retrata bem aqueles tempos bicudos, onde a incerteza e o medo prosperavam.

Ainda assim tive uma infância feliz, uma família calorosa e protetora me permitiu essa dádiva. Mas percebia as coisas e, de algum modo, também sofria.

Escutava histórias detrás da porta, como aquela, contada  por um tio militar, que, impotente, testemunhou a tortura de um estudante nas dependências do quartel onde estava lotado. Ouvinte furtivo, não fui poupado dos detalhes, que me assombraram em pesadelos por muitos dias, a ponto de lembrar até hoje.

Ok, você que, como eu, foi criança naqueles tempos, provavelmente não percebeu a coisa da mesma maneira.

Veja, eu também tenho saudades das brincadeiras da época, de jogar bola na vizinhança, do modo de vida mais livre, menos conectado. É natural. As boas lembranças da infância carregamos por toda a vida.

E você, que nem era nascido, tá nem aí para essas histórias de um passado tão distante.

Mas pense que, se você não sofreu com a repressão naquela época, pode ser que hoje a coisa seja diferente. Talvez hoje você ou sua família sejam colocados no radar da repressão.

Perdoem por tantos perigos, mas os dias eram assim.

Muita gente vivia o tempo todo sob ameaça. Mas as pessoas se adaptavam, continuavam vivendo.  Às vezes até extraiam coisas boas do infortúnio. Como aquele tio jornalista que, ao saber que o cerco se apertava contra ele, se transformou em um correspondente internacional de sucesso. Mas saiu de repente, para proteger a família.

Tente imaginar um país onde você pode ser parado a qualquer momento, sem qualquer justificativa, e conduzido a um local ignorado apenas para “averiguação”. Pense que, em uma destas ocasiões, alguém querido e próximo venha a desaparecer. Seu filho, talvez. Ou sua filha, por paquerar aquele menino que, desafortunadamente, se envolveu em uma atividade “suspeita”. Pense que você saberá que algo importante aconteceu, algo  que não querem que você saiba, quando encontrar uma receita de bolo em uma página de jornal. Pense que não haverá mais corrupção nem políticos desonestos, simplesmente porque, se houver, isto não será noticiado.

Os dias eram assim.

Mas a memória é curta, é preciso resgatar a mensagem que aquela geração nos passa, resumida também na bela música do Ivan Lins, para dizer aos nossos filhos que os dias eram assim.

É. Perdoem a cara amarrada, mas os dias eram assim.

Entendendo o medo, a sensação de viver naquele mundo tenebroso,  não podemos deixar de valorizar os novos dias, dias de passar a limpo, cortar os laços, largar a mágoa, lavar a alma. E comemorar, festejar que vivemos, ainda, em uma democracia. É assim que homenageamos os nossos pais.

Não permitam que as trevas retornem.

Marcos Bittencourt

Como Procurador do Estado de São Paulo, entre 1989 e 1997, atuou na Procuradoria Fiscal, em setor encarregado da defesa dos interesses fazendários nas ações de conhecimento (ICMS, IPVA, etc.) movidas em face do Estado de São Paulo. Entre 1998 e 2004, atuou na Procuradoria Judicial e na Procuradoria Regional de Campinas. Após 2004, experiência como autônomo e em escritório de médio porte, na área cível em geral (contratos, imobiliário, família, consumidor etc.). Capacitado como mediador judicial.

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