Um Bom Conselho

Eu havia concluído o curso de Direito pouco tempo antes e, recém matriculado em um prestigiado cursinho preparatório para a área jurídica, resolvi me dedicar exclusivamente ao estudo, visando aumentar minhas chances de aprovação em concurso público. Trabalhava, já por cerca de 2 anos, como estagiário do Dr. Briand Collin Ferreira (hoje meu querido sogro) e de seu associado, o saudoso Procurador de Justiça Dr. Antonio Celso Di Munno Corrêa, então já aposentado e exercendo a advocacia. Na verdade, poderia naquele escritório iniciar minha carreira de advogado, pois tinha ótimo relacionamento com os colegas (acabara de obter minha inscrição na OAB), mas preferi seguir outro caminho e, assim, fui comunicar ao Dr. Di Munno minha decisão de abandonar o escritório.

Com a extravagância discreta e a originalidade que lhe eram peculiares, bem como seu vasto e profundo conhecimento jurídico, o Dr. Di Munno ouviu minhas aspirações e ponderações, perguntou sobre o andamento de meu estudo até então e disparou:

 

“Esquece tudo o que está fazendo. Está tudo errado; antes de ficar procurando conhecimento de rodapé você precisa adquirir uma visão do TODO, conhecer cada área do direito por inteiro, entender os princípios jurídicos que informam cada matéria e, para isso, só conheço um jeito: leia como se fossem romances os manuais básicos de Direito Civil, Direito Penal e, se possível, faça isso em todas as matérias. Depois, se quiser, vá atrás do conhecimento de rodapé..”

 

(…)

Por instinto ou por admiração pelo mestre, resolvi seguir à risca o que, posteriormente, percebi ser o conselho de um sábio; abandonei o cursinho preparatório e, para falar a verdade, mais em razão da sorte e da auto-estima renovada, pouco depois de completar a leitura dos principais manuais de direito fui aprovado em concorrido concurso da área jurídica. No entanto, mais do que me auxiliar neste estudo preparatório, o conselho recebido mudou a forma como vejo o Direito e, não tenho a menor dúvida, se revelou uma lição para toda a vida.

Com o passar do tempo, passei a entender melhor a razão daquele conselho, bem como a perversa mecânica dos concursos públicos que, da forma em que concebidos, não selecionam necessariamente os mais aptos ao exercício da função, mas apenas os candidatos que acumularam maior quantidade de conhecimento exigido no edital. Isto, no entanto, não invalida a utilidade e a relevância do conselho do Dr. Di Munno, pois o acúmulo de conhecimento específico se torna muito mais fácil depois que se adquire uma visão do direito como um todo, coerente e lógica.

Na verdade, trata-se de simples questão de bom senso, comum a todas as atividades humanas: antes de erguer as paredes de uma casa, o construtor faz a fundação; antes de plantar, o agricultor prepara o solo; antes de operar o paciente, o cirurgião limpa o ferimento, e assim por diante.

De fato, seguindo o conselho do mestre, ao ler os 7 volumes do Curso de Direito Civil de Silvio Rodrigues percebi que uma informação contida, p. exemplo, no 5º. volume, complementava outra informação constante do 1º. ou do 2º. volume que, por sua vez, se relacionava a tema tratado no 3º. ou 4º. volume (e assim ocorreu repetidas vezes), de modo que, ao final do estudo, me foi possível apreender a lógica de cada área do direito e perceber a coerência de toda a informação recebida.

Mais até: pude perceber que certos princípios básicos e elementares são comuns, com certas peculiaridades, a todas as áreas de atuação do direito, o que me permitiu perceber que a divisão do ensino em segmentos (Direito Civil, Penal, Constitucional, etc.) obedece mais a uma necessidade didática do que à existência de uma fragmentação real da Ciência do Direito; para mim, o Direito é um só, ainda que o imenso conjunto de normas que o compõem torne impossível o seu estudo unificado sob uma única cátedra.

Por outro lado, cabe dizer que a utilidade do conselho não se restringe unicamente aos estudantes de direito, mas estende-se, de modo geral, a todos os estudantes que, em 4 ou 5 anos de faculdade, recebem um conhecimento fragmentado em capítulos, sem por vezes perceberem que todas as pequenas peças de conhecimento científico se encaixam no corpo, são coerentes entre si e decorrem da lógica intrínseca pertinente a cada área do conhecimento humano.

De fato, com o tempo, conversando com amigos e conhecidos, fui percebendo que a maioria dos estudantes conclui o ciclo universitário sem possuír esta noção do todo, o que justifica a insegurança inicial da maioria dos recém formados ao ingressar no mercado de trabalho. Depois, à medida que vão aprendendo e se familiarizando com o ofício escolhido, os profissionais acabam se especializando em determinadas áreas e perdem o interesse por matérias consideradas inúteis, desnecessárias ao exercício de suas atividades. Ledo engano…

De fato, minha experiência profissional e pessoal demonstrou que, muitas vezes, a solução de uma questão envolvendo, p. exemplo, uma relação de direito tributário, pode depender, na verdade, do conhecimento de matéria pertinente ao Direito Civil ou Penal.

Ora, o modelo de especialização, copiado dos americanos (cujas mega-corporações estabeleceram um padrão quase universal), se por um lado atende às necessidades do mercado de trabalho, por outro lado acaba produzindo profissionais extremamente especializados que, em muitas situações, são inábeis para lidar com questões mais amplas (não necessariamente mais complexas), pertinentes a mais de uma área de atuação profissional.

É certo que o sistema de acesso aos cargos públicos dificilmente sofrerá radical alteraçao, pois ainda que não seja o ideal (em termos de captação dos melhores profissionais), é com certeza o mais justo e democrático, pois elimina – em tese – favorecimentos pessoais. No entanto, há que se cobrar das autoridades de ensino uma ênfase maior à INTEGRAÇÃO do conhecimento disponibilizado ao estudante universitário, visando à formação de melhores profissionais.

Um último aviso: por melhores que sejam os professores de cursinhos preparatórios (e há alguns realmente excelentes), e ainda que se reconheça a verdadeira utilidade do ensino neles ministrados (para o fim a que se destinam), você não ouvirá em nenhum deles o conselho que ora repasso, uma vez que tais cursos pressupõem fato nem sempre verdadeiro (o conhecimento sólido de base) e, ademais, o conteúdo da mensagem não lhes interessa comercialmente. Em outras palavras, ninguém lhe dirá, antes que tenha pago a matrícula: “Leia os manuais e volte em seis meses..”

Bom proveito!!

Marcos Bittencourt

Como Procurador do Estado de São Paulo, entre 1989 e 1997, atuou na Procuradoria Fiscal, em setor encarregado da defesa dos interesses fazendários nas ações de conhecimento (ICMS, IPVA, etc.) movidas em face do Estado de São Paulo. Entre 1998 e 2004, atuou na Procuradoria Judicial e na Procuradoria Regional de Campinas. Após 2004, experiência como autônomo e em escritório de médio porte, na área cível em geral (contratos, imobiliário, família, consumidor etc.). Capacitado como mediador judicial.

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