Álbum de Fotografia

Memórias e fotografias possuem uma relação singular. As fotos despertam as memórias e estas, muitas vezes, são armazenadas como fotografias, amareladas, envelhecidas, em cores vívidas ou em preto e branco. Nem sempre são exatas e verdadeiras, já que a qualidade de ambas depende do foco, ou seja, dos olhos e da habilidade do fotógrafo. Ou do intérprete, se preferir. Ah, e ainda tem o fotoshop, que hoje nos permite dar uma “retocada” na imagem. Assim, em certo sentido, somos todos fotógrafos de nossas vidas. Ou editores, não é?

De todo o modo, lembranças e imagens despertam emoções às vezes esquecidas. A vida é como um álbum de fotografias.

FOTOS DESBOTADAS

Toda história tem um começo. Esta começa aqui.

31 de janeiro.

Foi um dia quente e úmido. Escurece, ainda dia, quase noite.

Querendo chegar logo  em casa. Não bastasse o cansaço, o desgaste emocional. Tudo que é novo enfrenta resistência. Não é fácil convencer as pessoas de que mudanças são necessárias.

“Mas o dinheiro é bom, os benefícios também. Carro da empresa, último modelo. Muito carro para pouco motorista. Preciso me habituar com esse grandão”.

Abre um sorriso.

“Melhor esquecer os problemas. Tem o garotão em casa, só 3 meses de idade, como bebe leite”.

Doido por um uísque, um carinho da mulher, ouvir o choro do bebê…

Pista molhada, uma curva, um caminhão. Fim da história.

29 anos de idade. O que foi, o que poderia ter sido, inúmeras hipóteses.

Tudo passado.

Golpe militar. Exílio ou guerrilha? Tortura ou outro fim? Anistia? Carreira política? PT ou PSDB?

Nada disso importa. Ficou um filho que não o conheceu e uma viúva que jamais se recuperou do trauma.

Passados 50 anos, resta uma lágrima de canto do olho. E um nome já esquecido.

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Ela tinha 27 anos e muitos planos. Há pouco havia nascido seu filho, um menino saudável, alegria do casal. Eles moravam em um apartamento alugado, mas não tinha problema. Com o emprego novo do marido, do jeito que as coisas iam, logo iriam poder comprar uma casa própria. Naqueles dias a vida social do casal diminuiu, a prioridade era cuidar do pequeno. Ela até sentia falta da vida movimentada de antes. Mal sabia ela que, algum tempo depois, a maioria dos amigos desapareceria.

Veio um telefonema e tudo mudou.

Todos os planos, todos os sonhos, desapareceram em um instante. A dor ficou, por muitos e muitos anos. Diria até que jamais se recuperou.

No entanto, dedicou-se ao filho de modo até obsessivo, jamais se casou novamente. Está certo que os poucos namorados que arranjou não valiam a pena. Mas o filho era o centro da sua vida.

E seus pais foram, por muitos anos, o amparo de que precisou naquela hora. E a família, sempre a família, estava ali para acolhê-la.

 

FOTOS DE ANTEPASSADOS

 

Somos todos frutos de um contexto, de uma história. E, aqueles que têm a sorte de ter uma estruturada, de uma família.

A relação entre avós e netos pode ser única e muito especial. Quem não gostaria de dizer, de boca cheia: EU tive o melhor avô do mundo!!

Este avô tinha um senso de humor especial, único. Adorava fazer piada para e com os netos. São inúmeras as histórias.

Às vezes ele comprava um enorme pacote de balas, dava um punhado para os netos e dizia, em tom de provocação : “Olha, eu guardo o pacote aqui, neste cantinho do meu armário. Mas NÃO QUERO que venham pegar minhas balas, viu?”. Evidente que era um incentivo ao delito e, não sabíamos como, ele ficava à espreita, só esperando que caíssem na armação. E aí, no flagra, dizia em tom de falsa lamúria: “Vocês não tem vergonha, pegando as balas de um pobre velhinho? Que coisa feia…” E a molecada saía a rir, ele seguramente mais do que todos.

Dizia ele, com ares de segredo, que na juventude havia sido artista de circo. Fugira de casa e passara um tempo viajando com a trupe, desempenhando esta ou aquela tarefa. E os netos, admirados e boquiabertos, imaginavam a cena.

Provavelmente era lorota da boa, mas com ele não se poderia saber. Fato é que adorava circos e palhaços e contava, com orgulho, que era amigo de um famoso palhaço da época .

Certo dia ele pediu (de fato ordenou) que os filhos chegassem mais cedo para o tradicional jantar familiar de domingo, pois queria levar os netos ao circo. Os pais, seus filhos, se prontificaram a acompanhá-lo, para ajudar a tomar conta da tropa (6 netos, entre 5 e 10 anos de idade). Ele proibiu terminantemente, era algo que ele faria com os netos e só com eles.

Foi uma fartura de pipoca, algodão-doce, refrigerantes e outras delícias, porém uma criança se divertiu mais do que todas as outras. Ele.

Maroto, puxava um neto de lado e dizia: “sabe, não conta para ninguém, mas você é o meu neto preferido”. Dizia isto a todos, é verdade, mas cada um deles se sentia especial.

Entre uma graça e outra, ele ensinava seus netos a viver. Como no dia em que, ao chegar em casa em um fim de tarde, encontrou o guri choroso, pedindo sua ajuda,  lhe dizendo que havia apanhado dos meninos da rua, e que não tinha coragem de sair de casa.

Ele falou duro com o menino, disse que era preciso se fazer respeitar, que o neto tinha que sair lá e enfrentar a turba (3 ou 4 moleques da mesma idade), levar e distribuir uns sopapos, o que não seria nada demais. E o colocou porta afora.

De fato, nunca mais mexeram com o menino na rua.

Aos netos adolescentes ele sempre chamava, perguntava como ia, o que pensava e, aqui e ali, colocava sua visão de mundo. Foi decisivo na educação de alguns deles,  e seu exemplo de bondade e humanismo ainda ecoam.

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Uma Dama, fruto de outra época.

Nascida dois meses antes do mais famoso desastre do século XX, desde cedo conheceu as ambiguidades da vida. Tendo perdido o pai ainda criança, junto com a mãe morou por um tempo na casa de seu avô, Senador da recente República, que ficava na frente da Faculdade de Direito.

Talvez por influência deste avô notável, recebeu boa educação, apesar da infância modesta.

Adorava cantar e tocava piano lindamente, certamente em razão das lições aprendidas em conservatório musical.

Mais velha entre cinco irmãos, ajudou a criar os três do segundo casamento de sua mãe, de tal modo que, muito jovem, entendeu o ofício da maternidade.

Foi mãe desde então, depois avó e bisavó, distribuindo amor a todos, mas dedicando maior atenção àqueles que mais necessitavam.

Disseram ao neto, certa vez: “seu avô era uma figura admirável, com seu carisma e personalidade. Mas sua avó, com força e dedicação, é quem manteve esta família unida durante todos estes anos”.

Ela se foi. Tranquila, quase dormindo, depois de 102 anos dedicados à família.

Sete filhos, quase vinte netos, um pequeno bando de bisnetos.

Suportou a dor de perder dois filhos.  Um deles doente, a quem se dedicou por 18 anos  com intensidade inimaginável.

Mesmo depois de 42 anos da morte daquele filho, foram para ele seus últimos pensamentos, suas últimas preocupações. “Ele tomou o remédio? Ele jantou? Dormiu direito?”.

É que, nos últimos anos, a demência cobrou um preço alto, mas não lhe tirou a alegria nem o sorriso, com o qual iluminava a todos.

Mas é fato, ela nem sempre reconhecia os membros de sua grande prole.

Um dia o neto chegou para o almoço e uma tia logo veio dizer: “Hoje ela não está reconhecendo ninguém, nem sabia quem eu sou. Quer ver?”.

Apontou para o neto e perguntou: “Mãe, quem é esse?”

Ela olhou, pensou um pouco, abriu um sorriso do tamanho do universo e disse: “Ora, é o meu neto”. E disse o seu nome.

Aquele sorriso o neto jamais esquecerá.

Razão e emoção não se misturam, são como água e azeite.

Ainda que as circunstâncias tornem mais fácil aceitar o fato, ninguém pode subestimar a dor da separação. Apesar da dor, forçoso é reconhecer que a morte dela, praticamente dormindo, foi uma benção.

O tempo cicatriza as feridas, altera as emoções. Eventualmente, a saudade substituirá a dor, de tal modo que restarão apenas as recordações dos momentos felizes. E a própria saudade.

Meiga e doce Vovó, tua família te ama.

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O menino viveu sua infância, quase inteira, na casa de seus avós, cercado de muito carinho por sua mãe, avós e tios. Sem contar o convívio frequente com os primos, que via como irmãos.

O tio mais novo era portador de síndrome de Down em um grau severo, raramente visto. Emoção pura, reagia aos fatos instantaneamente, mostrando tudo que sentia diante das situações que vivia. Passava da ira extrema ao carinho exacerbado, bastava cessar a causa de seu desagrado. Era, de certa forma, um anjo inocente, incapaz de qualquer maldade, na medida em que, conscientemente, não era capaz de desejar prejudicar quem fosse.

O menino, muito novo (talvez com um ou dois anos de idade), tinha medo daquele gigante que, ao contrário de todos os demais, não lhe dedicava carinho e atenção. Pior, chegava a ser agressivo com ele, talvez por ciúme.

Mas bastou o menino crescer um pouco para eles se tornarem amigos, e chegou um ponto em que o menino era uma das poucas pessoas a quem o tio obedecia. Coisas simples, como levá-lo para fazer xixi, eram tarefas complicadas, e por vezes o garoto tinha sucesso na empreitada. A avó despendia seu tempo inteiro à árdua tarefa de cuidar do seu filho doente, que, mais do que uma criança qualquer, exigia dedicação integral.

Mas não se resumia a isto. A maior parte do tempo ele era extremamente dócil, praticamente todos os dias beijava e abraçava o sobrinho, com uma força que chegava até a doer. E sempre que podia, gravitava ao seu redor. Nem sempre o sobrinho tinha paciência para toda aquela atenção, e repetidas vezes chegou a ser grosseiro com ele.

Então o tio morreu, aos dezoito anos de idade. O menino, aos oito anos, prestes a completar nove, ainda não sabia como assimilar a morte de alguém querido, e sofreu muito. Os mais velhos tentavam lhe explicar o significado da morte, que era algo natural, que todos iríam morrer, que o tio parou de sofrer, etc.

Mas não adiantava, a dor do guri não passava. Descobriu ali que a dor da perda é sempre intensa, não importam as circunstâncias, mas o amor que se sente pela pessoa que se foi.

Este menino teve um anjo em sua infância.

FOTOS DE INFÂNCIA

 

Há coisas que ficam na lembrança não se sabe bem por que.

Era um verão escaldante, mas naquele dia o sol entrava pela janela junto com uma brisa suave, iluminando o outro lado do quarto delicadamente, tornando o despertar muito agradável.

Era manhã adiantada e, apesar da sensação agradável, ele se sentia extenuado, o que ajudou a refrescar-lhe a memória.

Criança pequena ainda, estava frustrado e angustiado, pois, apesar dos seus veementes protestos, ainda ficaria mais alguns dias de repouso antes de se encontrar com os primos na casa de praia da família.

Recorda-se então, em flashes, do sofrimento de alguns dias antes, da febre inebriante, do calor insuportável, do congestionamento na velha Anchieta e, acima de tudo, do tio assumindo o controle, dizendo: “Esse menino precisa de um médico. Vamos voltar.”

E, de fato, estava padecendo de severa desidratação, um problema sério naqueles tempos e naquele verão em particular, tanto que ele ficou um ou dois dias internado no hospital. O tio provavelmente salvou-lhe a vida, e nunca lhe ocorreu agradecê-lo.

Aquele dia, aquela manhã e aquele despertar marcaram sua vida, pois deles sempre se recordaria. Aquele poderia ter sido um lindo dia para morrer.

Foi, no entanto, um lindo dia para começar a crescer, amadurecer e com sorte envelhecer, para aproveitar o melhor que a vida pode oferecer: bons amigos, a vida em família, um grande e verdadeiro amor, filhos dos quais se orgulhar, enfim, todos os valores perenes e gratificantes.

A dor? Ora, a dor.

Em suas diversas facetas e suas reiteradas aparições, é o preço que se paga pela grande oportunidade que é viver.

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A casa de praia era motivo de festa, reunia a família toda, três gerações. As crianças brincavam livres, com certa supervisão, é claro, mas com uma liberdade que já não existe hoje.

A diversão ia muito além da praia e do mar. A rua de terra, as brincadeiras no gramado do quintal, o balanço improvisado com um pneu velho, todas essas imagens despertam sensações há muito esquecidas.

O sol quente do meio da tarde disputava espaço, no gramado, com a sombra de um chapéu de sol. Depois de muito correr e brincar, ali era o melhor local para tomar um suco e descansar um pouco. Mas não por muito tempo.

Logo surgia uma outra brincadeira e, claro, sempre havia algum atrito. Seis crianças juntas são a receita não apenas para muita diversão, mas também para algumas briguinhas. O avô dizia: irmãos que nunca brigam não se amam, são indiferentes um ao outro. O mesmo vale para primos.

O menino chegou a brigar com todos os seus primos. Nunca por mais do que um dia, mas brigou. E as brincadeiras, assim como as brigas, não se restringiam aos primos. Vizinhos, filhos de amigos, a criançada toda entrava no rolo. Para o bem e para o mal.

Certa vez o menino brincava no quintal com a filha do caseiro e com uma prima. Esta era um anjo, doce e meiga, quase nunca se metia em confusões. Ainda hoje é assim. Ao contrário dele. Temperamental e emotivo, não conseguia escapar delas. Começou a chover, a casa trancada, as meninas correram para a “jaula” , local isolado da casa, onde os adultos planejavam confinar a criançada quando queriam sossego. Lá chegando trancaram a porta, deixando o menino na chuva. Casa trancada, jaula trancada, e ele ali sozinho, enquanto as meninas se divertiam e riam dele. Receita para confusão.

A porta era era uma armação de madeira, com duas folhas fixas e duas móveis, que sustentavam folhas de vidros retangulares, de cerca de 30 cm de largura por 20 cm de altura, do chão ao teto. A chuva aperta, a raiva também. Nem estava tão interessado na companhia delas, mas ficar ali se molhando também não era opção. Aos gritos, começou a sacudir a porta, pela maçaneta, esperando que elas a abrissem. Mas o que abriu foi outra coisa. Três folhas de vidro, soltas na armação de madeira, se quebraram. O que o menino percebeu, em seguida, foi o sangue, muito sangue, e um corte profundo e enorme no seu antebraço, parecia um vulcão em vermelho. Na hora não doeu nada, a profundidade do corte passou da camada que transmite a dor. Ele ficou mais chocado do que assustado ou com medo. Enfim, foram treze pontos. Mas não na loteca.

Pior não foi isso. Disseram que ele não conseguiu se controlar e socou o vidro. Três vidros, ao mesmo tempo?? E a priminha, com fama de anjo, só contribuiu para confirmar o mau gênio do garoto.

Mas essas histórias fazem parte do folclore da casa. Como aquela, de um bando de pirralhos, catando coquinhos que caíam do chapéu de sol e levando para os quartos, no andar de cima da casa. Quando os adultos perceberam, havia uma gritaria do lado de fora, com passageiros do trenzinho, que fazia passeios turísticos pela cidade, esbravejando na frente da casa, gritando para um bando de moleques que, no telhado da casa,  atirava coquinhos nos passantes. Que anjinhos…

Ou a do gêmeo que, furioso, chegou mais cedo em casa após um baile de carnaval no clube. O irmão se meteu em confusão, foi expulso do baile e ele, logo depois, deu de cara com o segurança: “mas eu já não te expulsei daqui?”. E lá foi ele pra casa mais cedo, para confrontar o irmão.

Ou a daquele primo que, por conta dos irmãos e primos mais novos, precisou  tomar três banhos no mesmo dia. É que o jardim da casa se transformou em um cenário de guerra, com ovos voando para lá e para cá, de dentro ou de fora da casa, graças à pirralhada que, naquele carnaval, aprontou todas. E, como em toda guerra, os tiros atingiram vítimas inocentes. Uma delas, por três vezes…

Enfim, aquela casa foi o cenário de inúmeras fotos, que marcaram a infância de muitas crianças.

Em especial, desta que vos fala.

 

FOTOS ESCOLARES

 

O menino não tinha dificuldades para aprender. Pelo contrário, aprendia rápido, o que nem sempre era bom.

Alguns anos depois, em uma limpeza de papéis antigos, achou um relatório de sua primeira escola, da professora do pré-primário, onde ela o elogiava mas ressalvava algo do tipo: quer sempre ser o primeiro a responder e não deixa os demais participarem…

Com o tempo aprendeu a ficar calado. Mas precisou de alguma orientação. Porque tão rápido quanto aprendia ele se dispersava. Com mais dois ou três colegas, logo que terminava a tarefa de classe procurava companhia e a bagunça começava. Então a professora teve uma sacada de gênio. Estabeleceu que em cada fila haveria um líder, escolhido entre os mais bagunceiros, que seria encarregado de manter a disciplina dos seus colegas, de tal modo que, ao fim do dia, a fila receberia uma, duas ou três estrelinhas, em conformidade com o comportamento demonstrado. A melhor fila receberia, ao fim do mês, um prêmio, que poderia ser uma caixa de bombons ou lápis, ou qualquer coisa do tipo. Ele se sentava na última escrivaninha da fila, terminava a lição e ficava vigiando os seus colegas. Ganhou seus bombons e a professora ganhou sossego…

Então veio a operação de divisão. Ele, que sempre fora bom em matemática, não entendia nada. Ficava ouvindo: sobra 2, põe zero, divide, pega a sobra…ele simplesmente boiava. Aí foi a um jogo de futebol com o tio, que sempre o levava nestas ocasiões. O time ganhando e o menino, aflito: “tio, quanto falta para acabar?”. No estádio, havia um  relógio enorme, ao lado do placar do jogo: “olha o relógio, menino!”; minutos depois, “e agora, quanto falta?”. O tio foi o primeiro a notar. Quase dois graus de miopia. Foi colocar óculos e a matemática se revelou novamente para ele.

Nos quatro anos do primário, estudou em uma escola de freiras. Cinco meninos e quinze meninas, um tormento. Está certo que uma delas era bastante interessante…Mas ele era durão, quem disse que gostava de meninas?? Ecaaa. Sempre que possível, pegava outros dois ou três colegas e ia jogar bola: “chutaaa Peléee!! defendeeee o goleiro!! tomaaaa Leão!!”. Aí vinha a freirinha e acabava com a brincadeira. “Chega de futebol no intervalo, vamos todos jogar queimada!”. Dilíciaaaaa.

Mas ele ficou bom na queimada. Separavam os times e ele era capitão de um deles. No outro, a capitã era ela. A menina. De quem ele não gostava, evidente. Ela era bonita, esperta, inteligente, geniosa. Ai, ai…

Certo dia a danada aprontou feio. Aproveitou a ingenuidade da menina mais tola da classe e disse a ela que o menino queria beijá-la. Saíram todas as meninas da turma atrás do coitado, para agarrá-lo e forçar o beijo indesejado. Depois de muito correr pela escola, o recreio para ele acabou no toalete masculino, em cima da tampa do vaso sanitário, escondido, bem quietinho, para evitar o desastre.

Se a pretendente do beijo fosse a organizadora da caçada ele não teria corrido tanto…

O nome dela ele não esqueceu, muito por causa da música, brega mas inesquecível:  “Ana cristina és a obra prima do supremo criador..

Ele não era briguento, mas não tolerava injustiça. Um dia, ainda na escola das freiras, viu um menino grande brigando com um pequeno. Uma disparidade enorme de tamanho. Ele foi lá e tentou separar, mas não deu…Acabou se atracando com o grandão, fazer o quê?

Mas não era santo. Já no ginásio, a timidez dele escondia um pouco do seu temperamento. Ele não tinha vocação para ser vítima de bulling, mas alguns não percebiam isto. Certo dia um amigo, muito gozador, mas que já estava passando do limite, chegou de manhã todo alegre, com cara de quem já ia fazer uma provocação. Ele estava irritado com alguma brincadeira anterior e já chegou com um chute na canela do “amigo”. Depois se arrependeu, lógico, a agressão foi extemporânea e sem razão. Manteve a amizade, mas passou a ser mais respeitado a partir de então.

Logo menino, o avô o ensinara a jogar xadrez. Para um pirralho até jogava direitinho, mas preferia outro jogo de tabuleiro. Na casa de praia, havia um hotel vizinho onde um velhinho ficava na recepção. Um dia ele passava por ali e o velhinho o convidou para jogar damas. Acabou ficando muito bom no jogo, virou até atração ali, dando surra nos hóspedes que se aventuravam a jogar com o pirralho, que nem dez anos tinha. Era um bom programa para as tardes de chuva. Certo dia os tios descobriram a razão do frequente sumiço do menino e ele foi proibido de voltar ao hotel. Talvez tenham pensado em pedofilia. Nada, era apenas um velhinho solitário, que buscava como fazer passar o tempo.

Na quarta série, inventaram um torneio de xadrez na escola. Acho que inscreveram todos os alunos, iam jogando em partidas eliminatórias, mas tinha um problema: quem saía ia para o pátio, logo em frente, e começava a jogar bola. Ganhou duas ou três partidas e o pátio enchendo, com a molecada no futebol. E ele ali, perdendo seu tempo com o xadrez. De teimoso ele se recusava a entregar o jogo, mas acho que ele secretamente vibrou quando encontrou um capaz de derrotá-lo. Mas também não se esforçou para ganhar… Xadrez nunca mais, faltava-lhe paciência.

Durante todo o ginásio foi o melhor aluno da classe. Depois que criou a fama, ela passou a atormentá-lo. Não podia alguém tirar uma nota melhor do que ele que os outros colegas já faziam expressão de espanto. Baita responsabilidade.

Na matemática ele se achava. O professor, toda aula, iniciava com um exercício, uma equação qualquer. O primeiro que resolvesse e entregasse ao professor ganharia meio ponto, a ser somado na média final. Competitivo, ele não deixava para ninguém, embora não precisasse do incentivo. A ponto dos outros alunos desistirem de tentar. Aí entrou na classe um coreano, acho que se chamava Kim…

O jogo virou. Se antes ele resolvia a questão em quinze segundos, enquanto os demais demoravam trinta, agora o coreano em cinco já tinha a resposta. O resto da turma vibrava, se sentia vingada. O bandido do coreano não falava porcaria nenhuma de português, mas na matemática arrebentava. Depois ficaram amigos, até porque o #@#@$ era graduado no taekwondo. Mas no início a garotada zoava o gringo e ele só dava risada. Entendia nada o coitado…

Gostava de futebol e até jogava direitinho, embora, já pré-adolescente, tivesse alguns quilos a mais na bagagem. Mas na sétima série, na hora de montarem os times que disputariam o campeonato interno de futebol de salão, viu que seria reserva no time A da classe. A turma tinha uma meia dúzia de caras mais velhos e mais fortes do que ele, então não tinha jeito, mal iria jogar. Resolveu montar o time B. É aquela história, né, em terra de cego quem tem um olho é rei.

Mas precisavam ser tão cegos???

Tinha um amigo, o Aloísio, que apenas por ser negro achava que era uma nova versão do Pelé. Jogava nada, mas quem é que tinha coragem de dizer pra ele? Qualquer coisa ele já achava que era discriminação…

Tinha os irmãos chilenos, cujos pais migraram para cá na época do Pinochet. Boa gente os dois, jogavam direitinho. Mas o goleiro era uma desgraça!!! Figuraça. Mas frangueiro. E tinha o Aloísio, né?? Pensa em alguém que se superestima. Pois é.

Acho que venceram uma por w.o. e empataram outra. Mas ele só se recorda da partida que disputaram contra os caras do 3o. colegial: 17 a 2. E o mais inconformado era o Aloísio, que achava que iam ganhar aquela…Sem noçãaaaaaao.

Se no primário era um colégio de freiras, onde só tinha meninas, o ginásio foi num colégio de padres agostinianos, onde a proporção se invertia. Na classe tinha uns vinte caras e umas cinco meninas, nenhuma notável a ponto de lembrança nesta narrativa. Pra paquerar ele tinha que sair da escola, buscar outras paradas.

Aí surgiu a época da Discoteca. Ele não dançava nada, nunca dançou, e ainda tinha a timidez. Mas não tinha alternativa, né? O colégio dos padres parecia um campo de guerra, se não era soldado era canhão…Aliás, esse era o apelido da mulherada da classe: “Os canhões de Navarone”. Tadinhas.

Quando ele tinha seus quatorze anos apareceu esse amigo, cujo nome era Sidnei, e o apelido era Magal. E o cabelo…igualzinho ao do verdadeiro.

Morava perto, viviam andando de bicicleta pela região. Um dia o Magal o convidou para a matinê da Banana Power, uma boate na Av. São Gabriel, que fazia sucesso na época. Topou, mas naquela, né? Dançava nada, ia ver como ficava.

Sorte dele que a pista de dança parecia uma lata de sardinha, de tanta gente. A galera pulava, quase sempre no mesmo lugar, pois se movimentar exigia uma dinâmica grupal, tipo revoada de andorinhas. Então ninguém notava que ali não tinha nenhum Travolta. De tão apertado que era, na mesma tarde ele passou a mão na bunda de uma menina, a mesma menina, por três vezes. Todas sem querer. Achou melhor sair de lá antes que topasse com ela pela quarta vez. Três já era duro de explicar.

Bons tempos aqueles. O maior, e talvez único estresse, era se manter como primeiro aluno da turma. Mas com a mudança de colégio isto iria mudar, tava na hora de curtir mais a vida.

 

FOTOS DA PRIMAVERA

 

Todos dizem que a primavera é a melhor estação do ano. Junto com o outono, faz às vezes de transição entre os extremos, inverno e verão e, talvez por isto, é a fase em que a natureza se revela em seu esplendor. Talvez seja assim também para nós, a fase em que já não mais crianças, mas ainda não prontos para a vida adulta, absorvemos tudo com uma intensidade maior. As flores parecem mais belas, as sensações mais fortes, tudo é mais intenso, por vezes até o sofrimento.

O garoto mudou de escola, abandonou o quartel dos padres agostinianos e, embora tenha ido parar em outra escola católica, agora a situação era diferente. Meninas, muitas meninas, tantas que ele e sua timidez não saberiam como lidar com elas. Cursando humanas, a situação se inverteu, pois agora era um punhado de meninos, que mal completava um time de futebol, e umas vinte meninas, algumas delas belíssimas.

Nos primeiros dias de aula ele não sabia direito para onde olhar, tantas eram aquelas que lhe chamaram a atenção.

Dos meninos, um definitivamente lhe chamou especial atenção. Entrou com tamanha empáfia na sala de aula, ignorando completamente os novatos, com ares de “dono do pedaço”, que ele jurou naquele dia que, antes do final do ano, iria tirar o sorriso da cara daquele sacripanta a fórceps. Mal sabia ele que aquele “pombo” se tornaria um dos seus melhores amigos, de uma vida inteira. Enfim, julgamentos errados acontecem, né.

Acima do peso, de óculos e tímido, sabia que suas chances com as meninas seriam poucas, então limitava-se a observar. Mas logo se entrosou com os caras, posto que adorava jogar futebol. Nos primeiros dias ajudou a montar o time de futsal da classe e, ipso facto, tratou de combinar um jogo amistoso com seus amigos da outra escola.

Foi até divertido ver o “pombo” escapar de apanhar por um triz. Foi arrumar encrenca logo com o sujeito mais esquentadinho entre seus antigos colegas. Mas como era o elo de ligação entre as duas turmas, ele tinha a obrigação moral de separar, né? Fazer o que, deixa para outra, a vez do cara logo vai chegar.

Mas não chegou.

Um dia ele chega para a aula e vem a notícia de que o pai do “pombo” havia falecido. A escola dispensou os alunos da série, para quem desejasse ir ao enterro, e providenciou transporte para os amigos mais próximos do pombo. Com o dia livre, e sensibilizado pela situação do cara, ele resolveu também ir ao enterro, de ônibus mesmo. Ele e outro colega penaram, mas chegaram ao local.

Foi um primeiro sinal de trégua para uma guerra não declarada.

Na verdade, nos meses seguintes eles se tornaram amigos, posto que a tragédia recente os aproximou. Únicos meninos da turma que eram órfãos de pai, a trágica circunstância criou algum elo entre eles.

É espantoso como as amizades surgem das circunstâncias mais inusitadas. Outro de seus melhores amigos de toda a vida era um garoto brincalhão, gozador, meio nerd. Franzino e às vezes chato, chegou um dia com ares de quem iria fazer uma piada sem graça e obteve uma reação inesperada. Na verdade, ele foi extremamente injusto naquela oportunidade..

Fato é que, depois de sacanear o nerd, ele ficou muito arrependido. Não bastou pedir desculpas, ele tentou reparar o dano. Nos meses seguintes, passou com frequência a pegar o ônibus em companhia do menino e, mesmo, convidá-lo para os programas que ele e sua turma faziam aos finais de semana.

Porém, como descobriria alguns anos depois, não fora inteiramente perdoado. Não até que o amigo, já grande e forte, se vingasse da antiga humilhação. Mas isto é outra história.

Marcos Bittencourt

Como Procurador do Estado de São Paulo, entre 1989 e 1997, atuou na Procuradoria Fiscal, em setor encarregado da defesa dos interesses fazendários nas ações de conhecimento (ICMS, IPVA, etc.) movidas em face do Estado de São Paulo. Entre 1998 e 2004, atuou na Procuradoria Judicial e na Procuradoria Regional de Campinas. Após 2004, experiência como autônomo e em escritório de médio porte, na área cível em geral (contratos, imobiliário, família, consumidor etc.). Capacitado como mediador judicial.

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