Posse de Arma de Fogo e o Desarmamento

Relacionado à escalada da violência nos grandes centros urbanos, este tema suscita opiniões e discussões acaloradas. Não vou me furtar a apresentar minha opinião pessoal e, embora respeitando opiniões contrárias, tenho consciência de que o tema é polêmico e carregado de forte conteúdo emocional.

De fato, a cada notícia de crime violento veiculado pela mídia, a tendência natural da população é a de se identificar com a vítima, e nem poderia ser diferente. Há um aspecto psicológico interessante aqui; do mesmo modo que nos projetamos e nos identificamos com o personagem protagonista de um filme de cinema – e, através de suas emoções, choramos e nos emocionamos diante de algumas situações vividas na tela -, diante de um crime violento temos a tendência a absorver o sentimento de impotência da vítima que, no momento que antecedeu ao delito, se viu diante da ameaça covarde representada por uma arma de fogo. Neste contexto é que, naturalmente, surge o sentimento de revide, ilustrado pelo seguinte pensamento: “se eu estivesse armado, e no lugar da vítima, o agressor teria recebido o que merece”.

Esta linha de pensamento tem muito a ver com nossas referências culturais, altamente influenciadas pela mídia norte-americana e, neste particular, pelos filmes de faroeste; John Wayne é um ícone não apenas lá, mas também aqui (por certo, a indústria armamentista americana tem muito a ver com isto).

De todo o modo, do ponto de vista individual, o desejo de possuir uma arma de fogo para autodefesa é perfeitamente natural e compreensível. Mais: tal desejo revela um sentimento positivo do ser humano, a capacidade de sentir empatia com o seu semelhante. No entanto, do ponto de vista da coletividade, tal desejo se justifica como um elemento positivo e benéfico? Creio que não.

Um dos principais argumentos contrários ao desarmamento, além do protesto pela garantia das liberdades individuais, é o de que a maior parte dos delitos praticados com armas de fogo envolvem a utilização das tais armas ilegais, de tal forma que restringir a posse e/ou o porte de armas (legais) não resolveria o problema mas, ao contrário, agravaria. É a lógica de John Wayne em seu estado puro: se o bandido possui arma, deve ser permitido ao mocinho possuí-la também.

Tal argumento, no entanto, ignora que as armas ilegais de hoje foram, em algum momento, armas legais, pois, quando menos, foram fabricadas por empresas legítimas, quando não tenham sido comercializadas no mercado formal. Ademais, parte das armas hoje legalizadas abastecerão, no futuro, o mercado ilegal de armas.

De todo o modo, me interessa mais o aspecto individual do problema: possuir e/ou portar uma arma de fogo reverte em real benefício ao cidadão comum? (Há situações excepcionais que, como tais, devem ser tratadas, e que por isso não interessam ao presente raciocínio).

Não se pode esquecer que, ao contrário do que acontece nas telas de cinema, na vida real é o bandido que, normalmente, tem mais habilidade no manuseio da arma, de tal modo que, em situações de confronto, na maior parte das vezes o fato de um cidadão possuir uma arma de fogo implica em forçar o meliante a utilizar a sua, com resultados previsíveis.

Ainda, nas mãos de um cidadão comum, a arma de fogo oferece realmente uma segurança adicional ou é apenas uma muleta psicológica, mais propensa a iludir do que a conferir efetiva segurança ao seu portador?

Uma fato notório, recentemente veiculado na mídia, serve para ilustrar este aspecto da questão (não pretendo condenar ou absolver ninguém, mesmo porque não possuo elementos suficientes para uma análise mais profunda do caso específico); o promotor de justiça que, acompanhado da namorada, se viu ameaçado por um grupo de baderneiros, pode mesmo ter agido em legítima defesa, ao disparar sua arma e matar um dos agressores. No entanto, se não tivesse em seu poder a arma, não teria sido possível evitar aquela situação? Diante da perspectiva de um confronto, não teria sido mais prudente simplesmente entrar no carro e fugir do local? Por certo John Wayne não aprovaria, mas uma vida teria sido poupada, assim como inúmeros problemas legais teriam sido evitados.

O ponto crucial é: a arma de fogo pode, aparentemente, ser a solução mais fácil – e perigosa – para resolver situações de confronto; por outro lado, pode se revelar uma terrível armadilha pois, na medida em que confere ao seu portador a ilusão de segurança, impele o cidadão a aceitar situações de confronto que, de outro modo, se não possuísse a arma, poderia facilmente evitar.

Por essas e outras razões sou a favor de restrições cada vez maiores não apenas ao porte, mas também à fabricação, comercialização e posse de armas de fogo, pelo que entendo que o Estatuto do Desarmamento (Lei Federal n. 10.826/03, regulamentada pelo Decreto 5.123/04) é apenas um passo, saudável, nesta direção.

Marcos Bittencourt

Como Procurador do Estado de São Paulo, entre 1989 e 1997, atuou na Procuradoria Fiscal, em setor encarregado da defesa dos interesses fazendários nas ações de conhecimento (ICMS, IPVA, etc.) movidas em face do Estado de São Paulo. Entre 1998 e 2004, atuou na Procuradoria Judicial e na Procuradoria Regional de Campinas. Após 2004, experiência como autônomo e em escritório de médio porte, na área cível em geral (contratos, imobiliário, família, consumidor etc.). Capacitado como mediador judicial.

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