Programa de computador – Incide o ICMS Imposto relativo à circulação de mercadorias e serviços?

OBS: O artigo que segue foi publicado no Boletim do Centro de Estudos da PGE em 1994. Embora o STF tenha recentemente pacificado orientação em sentido contrário, entendo que os argumentos, relativos à possibilidade da incidência do tributo, permanecem íntegros, malgrado esse entendimento.

 

Versa o presente trabalho sobre a incidência do ICMS sobre operações relativas à venda de software, face à controvérsia jurisprudencial a propósito do tema. A proposta é responder afirmativamente ou não à seguinte questão: software é passível de ser considerado mercadoria, para fins de incidência do ICMS?

Impõe-se, para melhor análise do tema, um breve relato dos argumentos utilizados em Juízo por ambas as partes Fisco e contribuintes, bem como do enfrentamento da questão pelos Tribunais. Senão vejamos:

  1. Empresa do ramo de informática tem ingressado em Juízo visando obter provimento de natureza declaratória que as desobriguem do recolhimento do imposto relativo às vendas de software por elas pra- ticadas.

Virtualmente, tais ações não implicam em extensa dilação probatória, posto que a questão tem sido colocada da maneira muito simples: software, por se tratar de obra intelectual, seria insuscetível de ser considerado mercadoria, inocorrendo a incidência do imposto estadual.

Argumenta-se, outrossim, que tais operações poderiam se sujeitar unicamente à incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza, tributo da esfera municipal.

Em reforço a tal conclusão, invoca-se a norma do artigo 27 da Lei n. 7.646/87 (que dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual sobre programas de computador e sua comercialização no País), de tal modo que a transferência de tecnologia pelo software, se daria em contexto de contratos de licença ou de cessão, caracterizadores de uma relação jurídica de prestação de serviços.

  1. Em contraposição a tais argumentos, a Fazenda do Estado de São Paulo vem argumentando que:

1) Inexiste incompatibilidade entre obra intelectual e mercadoria, a exemplo do que ocorre com diversos outros produtos resultantes da obra intelectual: dis- cos, livros, gravuras, etc.;

2) Nada impede seja uma única pessoa contribuinte de mais de um tributo, pois o que determina a incidência deste ou daquele tributo é a natureza de seu respectivo fato gerador (arts. 113, 114, 121 e outros do Código Tributário Nacional);

3) Há hipóteses em que as operações relativas a software propiciam a incidência em caráter exclusivo do ISS, mas existe ao menos uma hipótese em que incide apenas e tão somente o ICMS: quando o software é produzido e comercializado diretamente ao seu usuário, indistintamente considerado (evoca-se o clássico exemplo jurisprudencial a propósito das atividades das gráficas, onde ficou estabelecido que, conforme considerado o motivo e o destinatário da operação, ter-se-ia a incidência de um ou outro tributo);

4) Uma vez que tal operação venda, indiscriminada, de programa de computador-não está colocada sob o âmbito de incidência do tributo municipal (como não poderia, por sua natureza), é legítima a incidência do ICMS, à luz do disposto no artigo 155, 1, b da Constituição Federal, bem como da legislação infraconstitucional em vigor.

III. A questão, até o momento, não é pacífica na jurisprudência, existindo, contudo, alguns poucos julgados que expressando posição majoritária – acolhem a tese sustentada pelos contribuintes, no sentido de que software é insuscetível de ser considerado mercadoria. Conclui-se, assim, pela não incidência do ICMS sobre qualquer operação relativa a programa de computador.

Invocam tais julgados o disposto no parágrafo único do artigo 1º da Lei n. 7.646/87 que, ao conceituar o software, dispõe:

“Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados”.

Supostamente com fundamento em tal dispositivo, afirma-se que os disquetes que materializam e propiciam a comercialização dos softwares  são apenas o meio físico pelo qual se transfere a tecnologia de um programa de computador. Em outras palavras, argumenta-se que ao adquirente de um disquete interessa tão somente a utilidade que poderá extrair do programa nele contido, que se constitui de uma obra intelectual, ou seja segundo este entendimento, um bem material, insuscetível de ser considerado mercadoria.

Em outra linha de argumentação, alguns julgados acrescentam ao argumento acima exposto um outro, supostamente baseado no artigo 27 da citada Lei n. 7.646/87, que dispõe:

“A exploração econômica de programas de computador no País, será objeto de contratos de licença ou cessão, livremente pactuados entre as partes, e aos quais se fixará, quanto aos tributos e encargos exigíveis no País, a responsabilidade pelos respectivos pagamentos.”

Pela interpretação isolada de tal dispositivo, alguns julgados entendem que a comercialização (sinônimo de exploração econômica?) de programas de computador somente se dará em contexto de contrato de licença ou cessão, de modo a ficar descaracterizada a incidência do tributo estadual pela natureza jurídica destes contratos.

  1. Assim relatada a controvérsia jurídica a propósito do tema, interessa-nos especificamente analisar e questionar os fundamentos da corrente jurisprudencial que se prenuncia, de modo a melhor fundamentar a conclusão a propósito da indigitada incidência do tributo na hipótese.

Não é objetivo deste estudo enfrentar a questão em todos os seus aspectos, repetindo talvez exaustivamente os argumentos erigidos em defesa dos interesses do Fisco, mas discuti-la apenas sob o enfoque adotado por referidos julgados.

Esclareça-se que a controvérsia jurisprudencial a propósito do tema tomou um rumo imprevisto e inusitado, na medida em que se afastou da órbita do “Direito Tributário” para ingressar na esfera do “Direito Autoral” e, desta legislação, extrair conclusões no que toca à tributação das operações relativas a software.

Faz-se necessário, deste modo, discorrer sobre temas de “Direito Autoral para, com um mínimo de embasamento legal e não com apenas suposições ou insinuações, concluir pela incidência ou não do tributo na hipótese. Com esta finalidade, e imbuído de um certo espírito aventureiro, cumpre-nos responder às seguintes indagações:

1) os tais disquetes seriam mesmo apenas um meio físico para a transferência de uma obra intelectual (em outras palavras, o disquete pode ser considerado separadamente de seu contexto)?

2) exploração econômica e comercialização são expressões sinônimas, de modo que a efetivação desta só seria admissível em contratos de licença ou cessão (à inteligência do art. 27 da Lei n. 7.646/87)?

  1. Antes de responder diretamente a tais questões, cabe fazer uma distinção fundamental: obra intelectual não se confunde com a expressão material que dela resulta.

A própria Lei n. 5.988/73, que regula os direitos autorais no País, deixa antever tal distinção ao dispor que são obras intelectuais as Criações do Espírito, de qualquer modo exteriorizadas, tais como…” (art. 6).

Resulta do dispositivo que obra intelectual, enquanto uma criação do espírito, é um bem imaterial, intangível, vinculado ao seu criador de maneira absoluta, indissociável, pela própria natureza da relação que se estabelece entre esta e seu criador. Ao ser humano, contudo, é possível por qualquer meio fraudulento apropriar-se do resultado do trabalho criativo de outrem, mas ao larápio não é possível se apropriar do talento do criador. Explicitando esta ideia, seria perfeitamente possível a alguém – possuindo os meios e a oportunidade – fazer passar por sua uma tela legítima de Picasso, mas ao usurpador não é possível criar e modificar uma criação – como só o próprio criador faria. Esta intimidade existente entre criador e criatura ninguém pode usurpar, como ninguém pode tirar do ser humano a satisfação extraída de um trabalho bem feito. O reconhecimento público e as glórias sim, mas a realização pessoal não. A Picasso o que é de Picasso, como a César o que é de César”.

O bem jurídico que visa proteger o denominado “Direito Autoral” é precisamente a “Criação do Espírito”, assim entendida a obra intelectual, artística ou científica. Isto não significa dizer que os direitos do autor sejam intangíveis ou irrealizáveis (ao contrário, são considerados bens móveis, consoante afirma o artigo 2º da Lei n. 5.988/73). Significa, apenas, que para a proteção deste bem jurídico, necessário é disciplinar a publicidade dos meios que exteriorizam ou exprimem a obra protegida, bem como as relações jurídicas que se estabelecem entre o autor e terceiros em relação à obra.

A expressão material de uma obra, ou como a define o texto legal, a exteriorização de uma criação do espírito, não é propriamente o objeto do “Direito Autoral”, conquanto sobre ela se façam surtir seus efeitos (para simplificar o nosso trabalho, passaremos a denominar esta exteriorização como produto – posto que resulta da obra, termo que, consoante ensina Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, tem como significado entre outros – “resultado de qualquer atividade humana” (Minidicionário da Língua Portuguesa, 1ª ed., 8ª impressão, Ed. Nova Fronteira, 1977, p. 385).

É importante tal distinção posto que inexiste no comércio bem que, em dado momento, não tenha resultado de uma “criação do espírito”, salvo talvez aqueles diretamente extraídos da natureza, como por exemplo a água, a terra, os animais, etc. Mesmo estes não prescindiram, para sua comercialização, do engenho humano, posto que para se apropriar destes bens e comecializá-los, necessitou o homem dos meios adequados: a embalagem, a cerca, o cabresto, etc.

É fundamental ao intérprete proceder a tal distinção – vez que o legislador não o fez expressamente – para melhor compreender e delimitar a extensão do que se compreende como “direitos de autor”, posto que a confusão destes conceitos poderia levar a soluções injurídicas e mesmo contraditórias. Tomemos alguns exemplos:

  1. O artigo 29 da Lei n. 5.988/73, diploma ao qual se reporta a Lei n. 7.646/87, que regula os direitos sobre o software-dispõe que “Cabe ao autor o direito de utilizar, fruir e DISPOR de obra literária, artística ou científica, bem como o de autorizar sua utilização ou fruição por terceiros, no todo ou em parte”.

Note-se que o dispositivo, enumerando e atribuindo ao autor em relação a sua obra os três atributos do direito de propriedade – jus utendi, fruendi e abutendi – permite ao proprietário autorizar a terceiros apenas a utilização e a fruição de sua obra.

Ora, da confusão conceitual entre obra e produto dela resultante decorre uma aparente contradição: se o autor pode transferir a terceiro apenas a UTILIZAÇÃO e a FRUIÇÃO de sua obra, significa dizer que o terceiro não importa a que título negocie com o autor jamais poderá DISPOR sobre ela?

Exemplifiquemos concretamente: uma vez alienada uma escultura a terceiro, estaria este impedido de colocá-la no comércio, ainda que com autorização do artista? Neste caso, concretizada a “revenda”, poderia o escultor reivindicar sua escultura de quem quer que se encontrasse em sua posse?

Do mesmo modo, admitindo que aplicam-se ao PRODUTO as mesmas normas que regem a OBRA, como interpretar a norma do artigo 25, inciso V, do mencionado diploma legal, que afirma ser direito moral do autor em relação à obra “o de modificá-la, antes ou depois de utilizada”?

Poderia o artista reivindicar o seu direito de modificar o quadro que se encontra na posse do legítimo adquirente? Poderia o designer, em relação ao sofá que idealizou, entrar em uma residência e modificar sua estrutura? Ou poderia o escritor ingressar em uma biblioteca para extirpar páginas do livro que escreveu?

A confundir-se “obra intelectual” com o “produto” que dela resulta, a resposta seria afirmativa em todos os exemplos acima, o que é evidentemente ABSURDO.

  1. A rigor, a levar-se a extremos o raciocínio, enquanto resguardados os “direitos do autor”, ninguém poderia adquirir a propriedade PLENA sobre o produto resultante de obra intelectual protegida. Não é este, contudo, o espírito da lei. Oportuna a lição de Silvio Rodrigues:

“A proteção econômica ao interesse do autor se encontra na exclusividade que lhe confere a lei de reproduzir sua obra. De modo que, durante sua vida e afora o caso especial de expropriação, ninguém pode, sem a anuência de seu autor, dar a público obra literária, cientifica ou artística” (in Direito Civil, v. 16 ed., Saraiva, p. 236).

Esta é, precisamente, a finalidade da proteção estabelecida no que toca aos direitos patrimoniais do autor. Significa dizer que o autor pode, até mesmo, obstar a comercialização (como também a reprodução, utilização indevida, etc.) ilícita ou fraudulenta do “produto” resultante de sua “obra”, mas não pode, a nosso ver, reivindicar o produto do terceiro que, de boa-fé, o adquiriu.

Note-se, pois, que a interpretação correta dos supracitados dispositivos só é possível uma vez consideradas a OBRA e o PRODUTO dela resultante como coisas DISTINTAS. Vejamos:

O comando do artigo 29 antes mencionado impede que o autor transfira a terceiros a própria OBRA intelectual ou artística (considerada em seu aspecto abstrato, como fruto da criatividade humana, por natureza vinculada a seu criador), mas não impede que aliene direta ou indiretamente o PRODUTO (ou produtos) que dela resulte.

Significa dizer que o Direito Autoral repudia toda e qualquer FALSIDADE que toque à autoria de “OBRA INTELECTUAL”. Em outras palavras, “criador” e “criação” estão unidos por um vínculo tal que não se admite seja modificado pelo homem, vez que o Direito Autoral considera INDISPONÍVEL o direito do autor à autoria de sua obra, como bem que é colocado FORA DO COMÉRCIO. Assim, o autor pode até mesmo deixar de tornar pública sua obra, mas não pode renunciar ou negociar a autoria de sua criação.

Neste mesmo contexto se enquadra a norma do transcrito artigo 25, inciso V que, na medida em que permite ao autor fazê-lo, impede que terceiro modifique a OBRA, como concebida pelo seu criador. Isto não significa, contudo, que o autor possa interferir com a essência do PRODUTO, uma vez colocado sob a esfera do patrimônio de seu adquirente.

Sem pretender esgotar a matéria ou exemplificar todas as implicações da distinção feita no âmbito do “Direito Autoral” – o que não é objetivo deste estudo e nem se afigura possível ao subscritor, parece-nos certo que, ainda que possamos vislumbrar hipóteses em que a obra e o produto que dela resulta estejam EXPRESSAS de maneira única, indissociável (por exemplo, no tocante à escultura, à pintura, a uma obra de arquitetura), OBRA e PRODUTO são conceitos inconfundíveis.

VII. De toda forma, ainda que en passant, já tocamos em um ponto crucial da controvérsia, qual seja estabelecer com precisão qual o objeto de estudo do “Direito Autoral”. Este objetiva, a teor de legislação invocada, estabelecer o vínculo jurídico existente entre a “obra” e seu criador, bem como regular as relações jurídicas decorrentes deste vínculo.

Deste simplório conceito permitimo-nos concluir que o comércio de uma mercadoria é matéria estranha ao “Direito Autoral”, ainda que, INDIRETAMENTE, possa sofrer as consequências de suas normas (isto porque, como é inquestionável, todos os ramos do direito se relacionam entre si).

As relações jurídicas disciplinadas no âmbito do direito autoral são exclusivamente aquelas decorrentes do vínculo existente entre o autor e sua OBRA, ou entre o TITULAR de um direito autoral e terceiros, em razão de obrigação contratual ou legal assumida. A comercialização de um produto resultante de uma obra intelectual, não sendo feita pelo seu autor, escapa à órbita da disciplina denominada “Direito Autoral” (mesmo porque, diga-se, nas ações judiciais que ensejaram o presente trabalho figuram no polo ativo pessoas jurídicas, que não possuem e nem podem possuir –  TITULARIDADE de “direito autoral”, pela própria natureza personalíssima deste).

Daí porque os contratos de “licença” e “cessão”, mencionados no citado artigo 27 da Lei n. 7.646/87, não disciplinam, como não poderiam fazê-lo, a atividade de comercialização por terceiros de produtos resultantes de “obra intelectual” (tal dispositivo, contudo, será posteriormente objeto de análise mais apurada).

Importa consignar que, da mesma forma que a legislação tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado (art. 110 do Código Tributário Nacional), não poderia fazê-lo o legislador ao disciplinar o “Direito Autoral”, para fim de caracterizar a Incidência ou não de determinado tributo.

Tem plena aplicação à hipótese o disposto no artigo 4º do Código Tributário Nacional, pelo qual “a natureza jurídica específica de um tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la a denominação e demais características formais adotadas pela lei;” (inc. 1).

VIII. Feitos tais esclarecimentos, cumpre-nos repudiar a conclusão de alguns julgados que, por considerar o disquete um “meio físico” para a transferência de um “programa de computador -premissa efetivamente verdadeira -, entendem ser este insuscetível de ser considerado “mercadoria”, posto que “obra intelectual”. Da premissa não decorre logicamente a conclusão.

Primeiro porque, como demonstrado, o “programa de computador”, transferido por meio de um “disquete”, não constitui, em si, “obra intelectual”, mas um PRODUTO resultante de “obra intelectual”, conforme demonstrado.

De outro lado porque, na hipótese considerada – venda indiscriminada, em escala comercial, para quem quer que se disponha a pagar o “preço” do produto – o disquete é essencial para a efetivação do negócio Jurídico, indissociável de seu conteúdo (recorde-se, uma vez mais, que a pretensão do Fisco não recai sobre aquelas operações efetivadas “sob encomenda”, ou condicionadas a necessidades específicas – previamente ajustadas do adquirente).

O argumento de que ao adquirente do software só interessa a utilidade que possa extrair do produto, procurando minimizar a importância do “meio físico”, é extremamente capcioso, posto que na hipótese em questão sem o disquete seria impossível ao destinatário utilizar o “programa”.

Exemplifiquemos nossas assertivas tomando como exemplo o disco e a música, que é o que mais se assemelha à hipótese considerada (um está para o outro assim como o “disquete” está para o “programa” adquirido). Considerando-se a música contida em um “disco de vinil” como “obra intelectual” forçoso seria admitir a possibilidade, por exemplo, do Chico Buarque invadir uma residência qualquer para, arrependido, excluir uma música do disco, sob o pretexto de sua má-qualidade artística. Tal não ocorre porque o disco e o seu conteúdo, uma vez autorizada sua comercialização pelo autor, é de propriedade exclusiva de seu adquirente, vez que é produto de “obra intelectual”. Da mesma forma ocorre com o “programa de computador”, quando adquirido em um “balcão” de loja especializada ou mesmo, como acontece atualmente, em bancas de jornal. Para que tal produto chegue ao consumo é indispensável o “disquete”, meio físico desta comercialização. E por que não?

  1. Cumpre, por fim, estabelecer definitivamente que “exploração econômica”, colocada como objeto dos contratos de “licença” e “cessão” no âmbito do “Direito Autoral”, não se confunde com comercialização, como se pode concluir dos próprios termos do invocado artigo 27 da Lei n. 7.646/87, agora reproduzido em sua íntegra:

“Artigo 27 A exploração econômica de programas de computador, no País, será objeto de contratos de licença ou cessão, livremente pactuados entre as partes, e nos quais se fixará, quanto aos tributos e encargos exigíveis no País, a responsabilidade pelos respectivos pagamentos.

Parágrafo único – Serão nulas as cláusulas que:

  1. a) fixem exclusividade;
  2. b) limitem a produção, distribuição e comercialização;
  3. c) eximam qualquer dos contratantes da responsabilidade por eventuais ações de terceiros, decorrentes de vícios, defeitos ou violação de direitos de autor.”

Note-se, pois, que a PRÓPRIA LEI DISTINGUE “EXPLORAÇÃO ECONÔMICA” e “COMERCIALIZAÇÃO”, na medida em que determina que os contratos que tenham por objeto a “exploração econômica” de OBRAS… não poderão conter cláusulas que limitem a “comercialização dos PRODUTOS.

Comercialização, pois, é o modo pelo qual o licenciado ou autorizado explora economicamente uma determinada “obra”, fato que, à evidência, NÃO É OBJETO DE PROTEÇÃO DO CHAMADO “DIREITO AUTORAL”.

Oportuna novamente a lição de Silvio Rodrigues:

“O direito autoral, embora personalíssimo como emanação que é da personalidade de seu titular, pode, sob seu aspecto econômico, ser cedido a terceiro, para efeito de exploração comercial. Do resto é o que habitualmente ocorre, pois o escritor, por exemplo, raramente está equipado, material ou intelectualmente, para reproduzir sua obra ou explorá-la no campo mercantil. De sorte que, através de contrato de edição ou de representação dramática cede seus direitos a terceiros. Ver-se-á logo mais que a cessão não envolve transmissão do direito de modificar a obra, nem implica renúncia à paternidade” (ob. cit., p. 237).

Vê-se que, na hipótese considerada, o “autor” do programa usualmente cede ou licencia terceiro em relação a seus direitos sobre a obra direitos de utilização e fruição DE OBRA, terceiro que a reproduz e lhe dá publicidade. Os direitos do autor, assim, ficam resguardados, e se traduzem em uma relação jurídica envolvendo o autor e a empresa, que usualmente adquire o direito de EXPLORAÇÃO ECONÔMICA DA OBRA.

Deste modo, as relações jurídicas de direito autoral se ESGOTAM no contrato de cessão ou licenciamento, celebrado entre o “autor” e o cessionário ou licenciado que, adquirindo o direito de “exploração econômica” da obra, está autorizado a PRODUZIR, distribuir e COMERCIALIZAR O PRODUTO que dela resulta.

A comercialização de um software, pois, salvo se efetuada diretamente pelo seu autor, é usualmente PRECEDIDA de um contrato de licenciamento ou cessão de direitos autorais, o que não significa que esteja limitada a estes negócios jurídicos. É o que se infere, mesmo, do artigo 53 da Lei n. 5.988/73, pelo qual “A cessão total ou parcial dos direitos do autor, que se fará SEMPRE POR ESCRITO, presume-se onerosa…”. A aplicação de tal exigência à comercialização de um produto qualquer inviabilizaria a divulgação de toda e qualquer “obra intelectual”, o que, à evidência, não era o intuito do legislador.

Tais conclusões, de todo modo, se evidenciam pelo teor do artigo 28 daquele mesmo diploma (Lei n. 7.646/87), ao dispor que “A comercialização de programas de computador, ressalvado o disposto no artigo 12 desta lei, somente é permitida a empresas nacionais que celebrarão, com os fornecedores não nacionais, os contratos de cessão de direitos ou licença nos termos desta lei”.

CONCLUSÃO

  1. Resumindo, há diversas operações relacionadas a software que não propiciam a incidência do imposto estadual.

Assim ocorre, por exemplo, quando o “autor” do programa -necessariamente uma pessoa física – presta a terceiro um serviço feito por encomenda. Do mesmo modo, quando o “programa” é idealizado tendo em vista condições específicas do adquirente. Ainda, inocorre a incidência do ICMS quando o “autor” cede ou licencia, total ou parcialmente, os direitos sobre sua “obra” a terceiros.

No entanto, quando o autor ou especialmente o “licenciado” ou “cessionário”, como usualmente ocorre – produz e comercializa, indiscriminadamente – sem ter em vista encomenda ou condição especial do adquirente, um software padronizado, incide o tributo.

Basta vislumbrar esta única hipótese para responder-se afirmativamente à questão proposta, ou seja, SOFTWARE PODE SER CONSIDERADO MERCADORIA, para fins de incidência do ICMS.

São Paulo, 1º de fevereiro de 1994

Marcos de Moura Bittencourt e Azevedo

Artigo publicado no Boletim da Procuradoria Geral do Estado, vol. 19, número 5, Maio de 1995, págs. 15/19

Marcos Bittencourt

Como Procurador do Estado de São Paulo, entre 1989 e 1997, atuou na Procuradoria Fiscal, em setor encarregado da defesa dos interesses fazendários nas ações de conhecimento (ICMS, IPVA, etc.) movidas em face do Estado de São Paulo. Entre 1998 e 2004, atuou na Procuradoria Judicial e na Procuradoria Regional de Campinas. Após 2004, experiência como autônomo e em escritório de médio porte, na área cível em geral (contratos, imobiliário, família, consumidor etc.). Capacitado como mediador judicial.

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